Estadão, 25/08/2011
Faz hoje 50 anos que Jânio Quadros renunciou à Presidência, sete meses depois da posse. Fora eleito com mais de 48% dos votos e desfrutava de grande autoridade e popularidade. Eu soube que ele existia ali pelos dez anos de idade. Morava na Vila Bertioga, no Alto da Mooca, à época um bairro da periferia de São Paulo: sem rede de esgoto, nem pavimentação e iluminação na maior parte das ruas.
Eu acompanhava algo da política por rádio, jornal e xeretando as conversas dos adultos. Lembro-me quando Dona Rosa, mãe do meu melhor amigo, operária quando solteira, disse sobre a eleição para a prefeitura de São Paulo: Esse Jânio é sério, diferente dos políticos. Minha mãe votou nele, cujo rosto só conhecia de um santinho colado no bar da esquina. O tostão contra o milhão! A voz do candidato? Pelo rádio, era estranha, mal humorada com os políticos, com um sotaque parecido com o do meu professor de latim.
Vitorioso, JQ virou figura conhecida: magro, despenteado, vasto bigode, estrábico, terno e colarinho amassados, aparência de quem ainda vai tomar banho. Tive a primeira discordância explícita com meu pai, que não votava por ser estrangeiro, mas que passou a detestar o novo prefeito: Esse aí falava contra os ladrões, mas sua prefeitura cobra caixinha no mercado tinha banca no Mercado Municipal. A discórdia piorou quando Jânio deixou logo a prefeitura para se candidatar ao governo estadual, com meu apoio e o de Dona Rosa. E atingiu o ápice quando concorreu a presidente. Dele foi meu primeiro voto. Achava que tinha feito bom governo, operoso e sem escândalos, e apoiara um sucessor melhor: Carvalho Pinto.
Plínio de Arruda Sampaio, auxiliar do novo governador, revelou que, à época, fizeram uma discreta investigação sobre possíveis irregularidades na sua administração e nada encontraram. O padrão dos anos 50 não durou até 1985, ao voltar à Prefeitura. Fez uma gestão que envergonharia o político de trinta anos antes.
Jânio foi o primeiro grande líder popular nacional fora do establishment. Não tinha sido projetado, como Adhemar de Barros, pelo Estado Novo nem fizera carreira, como Juscelino, com políticos e partidos do âmbito varguista. Ao assumir a Presidência, aos 44 anos, era um estranho em Brasília. A renúncia levou-me a participar pela primeira vez de manifestações de rua, mas não por sua volta, e sim pela posse do vice: João Goulart, o Jango. Naquele momento, ninguém entendia por que um presidente forte e popular deixara o cargo.
É interessante que o atual debate sobre governabilidade se dê no cinquentenário da renúncia. Jânio lutou pela versão de vítima, segundo a qual sua queda foi resultado da ação de forças terríveis (e não ocultas), que o teriam impedido de governar.
O depoimento de seu secretário de imprensa, Carlos Castello Branco, confirmou a hipótese: Jânio não foi forçado à renuncia e usou-a como arma para voltar com poderes imperiais. Confirmou também que ele não intentou chefiar uma quartelada até recusou oferta de seus ministros militares. Passou por sua cabeça emular Charles de Gaulle, que renunciara à chefia do governo francês no após-guerra, em meio aos embates da política parlamentar, e fora chamado para presidir o país, com grandes poderes, em 1959. No Brasil, a história não se repetiu nem como farsa.
Jânio apostou que os comandantes militares jamais aceitariam a posse de Jango, do PTB. O impasse só teria uma saída: a sua volta. Presidente e vice eram eleitos separadamente. Jango dobrara com o General Lott, candidato do PSD. Estava criado o cenário para a instabilidade e a conspiração. JQ até estimulara a chapa Jan-Jan; queria alguém de risco na linha de sucessão, na suposição de que as Forças Armadas jamais dariam posse a um varguista.
De fato, os ministros militares rejeitaram Jango, que estava em Cingapura, vindo da China, em missão oficial. Enviaram um pedido de impedimento ao Congresso, que formou uma Comissão Mista. Veio a Campanha da Legalidade, liderada por Leonel Brizola (PTB), governador do Rio Grande do Sul. A comissão negou o impedimento e aprovou a solução parlamentarista, articulada pelo PSD. Os militares aceitaram. A manobra de Jânio se frustrara.
A UDN, principal apoio de Jânio, era antigetulista, conservadora, formada em 1945, e sempre batida nas urnas pela aliança getulista PSD-PTB. Jânio fizera uma campanha simbolizada na vassoura do poder para varrer a corrupção em Brasília. Varre, varre vassourinha Isso de faxina é coisa antiga.
O presidente logo afastou-se de parte dos que o apoiaram, mas sem formar uma base política consistente, apesar de ter nomeado ministros dos principais partidos da situação e da oposição. A maior novidade foi a política externa independente, com um certo afastamento dos EUA, em plena Guerra Fria e no calor da revolução cubana, à qual Jânio mostrava simpatia. Começou a reatar relações diplomáticas com a União Soviética. Não se menospreze o trauma que isso representava. A violenta reação de Carlos Lacerda, maior líder da UDN, não tardou. Jânio tinha força para articular uma base majoritária no Congresso. Preferiu o autogolpe. Fracassada a manobra, abriu caminho para a instalação da ditadura em 1964.
Hoje o Brasil é um país institucionalmente muito mais maduro. É impensável as Forças Armadas entrarem no jogo político. E os governantes sabem que não mandam sozinhos. A saga janista constitui um caso para estudo do papel do indivíduo na história. As instituições e a vida dos brasileiros foram profundamente afetadas durante décadas pela decisão desequilibrada de uma só pessoa.
A explicação de JQ para a renúncia enfatizou sempre a contradição até hoje invocada para justificar malfeitos: ou um governo de minoria, instável e incapaz de executar seu programa, ou um governo estável, mas que aceita lotear o aparelho de estado entre corruptos. Era um falso dilema ontem. É um dilema falso hoje.