ECONOMISTAS OU MÉDICOS

Folha de S.Paulo
9 de agosto de 1988

É natural que face à inflação de um ponto percentual por dia útil, multipliquem-se as inquietações e angústias, seja dos que sofrem os efeitos dos aumentos de preços sobre sua capacidade de consumo, seja dos que estão à frente de empresas que devem decidir sobre produção, investimentos e empréstimos.

A intranquilidade também se estende para todos os que se preocupam com a estabilidade política e o fortalecimento do regime democrático. Há o temor, como disse premonitoriamente Keynes, pensando na Europa Central do início dos anos 20, que a doença do corpo (hiperinflação e desorganização econômica) chegue à mente (convivência social e política) da sociedade.
Nesse contexto, como é rotineiro, eleva-se rapidamente a demanda efetiva para que os economistas prescrevam receitas eficazes para combater e dobrar a doença. Paralelamente, a imprensa especula sobre a permanência do ministro da Fazenda e as entidades empresariais, justamente aflitas, tomam a iniciativa de propor medidas e acordos destinados a conter o furo inflacionário.

Na verdade, sem menosprezar o papel de seu erros e acertos, é inquestionável que os economistas têm sido, no Brasil pós-1964, supervalorizados na sua capacidade para provocar crises ou milagres econômicos. Simplificando e forçando a comparação, há pelo menos três diferenças importantes entre uma doença do organismo humano e outra do organismo econômico.

No primeiro caso, há as enfermidades curáveis e as incuráveis; e quando a moléstia é curável, uma receita adequada e um bom comportamento do doente – que é mais interessado – costumam resolver. No segundo caso, os problemas são diferentes: a probabilidade de doenças incuráveis, pelo menos no organismo econômico brasileiro, são bem menores. Mas é provável existir mais de uma receita adequada por certo com efeitos secundários diferentes e o organismo econômico sempre apresenta fortes reações à terapia, mesmo que ela seja correta, não raramente levando tudo a perder. Por que? Porque toda aplicação de terapias anticrise gera reações e expectativas contrárias, fundadas ou infundadas, de partes do organismo. Reações difíceis de contrabalançar, especialmente quando o comando médico, por uma ou outra razão, hesita, face ao vigor das oposições existentes.

Desse modo, podemos enforcar de modo heterodoxo o papel dos economistas face a uma crise: menos do que receitas acabadas, o melhor e mais eficiente que têm a fazer é alimentar o debate, levantar idéias, revisar experiências, sublinhar condições e limites das soluções discutidas. Em suma, contribuir para o amadurecimento e a maior racionalidade de visão da sociedade a respeito das questões econômicas.

Quanto à outra parte da rotina – sacrificar o ministro da Fazenda (ou do Planejamento, ou ambos) – é rigorosamente inútil, se não contraproducente, sobretudo quando o doente é tão rebelde a qualquer tratamento razoável e o governo não tem forças para bancar a terapia. A menos que tivesse essas forças e fossem disponíveis outras receitas adequadas e prontas, o que não acontece.

Por último, a formulação de propostas e a intensificação de propostas e a intensificação do debate no meio empresarial devem ser encaradas positivamente, e tomara se firmem com rotina. Não porque sejam necessariamente corretas, a cada instante, ou sejam absolutamente imparciais, mas porque refletem empenho na solução da crise e uma tentativa de engajamento na visão da sociedade com um todo, fugindo aos marcos estreitos do corporativismo. É um bom avanço, que deve ser encarado de forma construtiva.

José Serra