O Selinho

Folha de S.Paulo
20 de dezembro de 1988

Se for, e deverá ser, sancionado pelo presidente Sarney, o selinho do “pedágio em casa” entrará para sempre – a menos que o Judiciário nos proteja – na vida de todo motorista ou proprietário de veículo.

Os postos de pedágio nas estradas federais serão desativados. Os que neles trabalham ficarão ociosos, mas não perderão o emprego, pois em sua maioria gozam de estabilidade. Além disso, muitos, mas muitos mais policiais rodoviários terão que ser contratados, para descobrir “infratores”. Fenômeno semelhante ocorrerá nas estradas estaduais, pois, rapidamente, os governadores criarão também o seu pedágio em casa.

O dono do veículo será duplamente onerado. Paga o IPVA – Imposto sobre a Propriedade de Veículos Automotores – e pagará pedágio mesmo que raramente trafegue por rodovias. Basta a simples possibilidade de ter que fazê-lo e o temor da multa. E quem andar uma vez por mês pagará a mesma coisa que os que trafegarem 30 ou 40 vezes…

De fato, o pedágio em estrada é um preço pago por um serviço recebido diretamente por quem nela trafega. É a contrapartida de um serviço. Não deve, nem pode ser cobrado de maneira genérica e diante da simples possibilidade do uso do serviço.
Do ponto de vista operacional, o esquema do selinho engendrerá complicações, aborrecimentos, terá custos significativos e, evidentemente, ajudará a realizar o imenso potencial brasileiro de truques e estratagemas para iludir o fisco. Por exemplo, numa residência com três veículos, o selinho poderá mudar do pai para o carro do filho e deste para o da irmã. Diz-se que a solução seria colocar um adesivo forte, difícil de ser removível. Mas nesse caso, em 12 meses, as janelas dos automóveis exibiriam uma dúzia de selos grudados, todos, é óbvio de cores diferentes. O que dizer, então, do inevitável ágio sobre o preço dos selinhos vendidos em postos de gasolina, bancas de jornal e barbearias?

A grande justificativa apresentada para o pedágio em casa é a necessidade de recursos para manutenção de estradas, item abandonado nos orçamentos federais do último triênio. Estima-se que esse pedágio semi-universal renderia 500 milhões de dólares ao ano.

É certo que as estradas, especialmente as federais, têm sido pessimamente preservadas. Mas isso justifica um tributo especial? Há o problema das estradas, como há o drama da fome, do analfabetismo, da poluição, etc. Caberia criar tibutos específicos para resolver cada um deles?

A solução teria que percorrer outro caminho. O governo, na sua mensagem orçamentária destinou 6 milhões de dólares para manutenção de estradas. O Congresso, ao analisar o orçamento, multiplicou esse número mais de dez vezes. Se tais recursos ainda são insuficientes, o caminho deveria ser o de reforçar a dotação orçamentária de 1989 – há inúmeras possibilidades a curto prazo de fazê-lo – e, para 1990, atribuir mais prioridade a esse item na lei de diretrizes orçamentárias.

Isso tudo significaria que o Legislativo estaria assumindo a maioridade que a nova Constituição lhe outorgou, discutindo e decidindo em cada ano, democraticamente, quais as prioridades do ano seguinte. Nada mais avesso aos cartórios do que esse procedimento, que permite respeitar minimamente os contribuintes e resistir melhor aos lobbies (quanto mais não seja porque os diferentes lobbies, na discussão do orçamento, se contrapõem).

Aliás, a Constituinte foi mais sábia e adulta, quando, em quatro oportunidades, rejeitou diferentes versões de dispositivos que procuravam assegurar cartoriamente os interesses dos recapeadores de estradas.

José Serra